O aproveitamento racional e adequado da propriedade rural e sua função social na ordem constitucional econômica

A propriedade, como um dos elementos fundamentais ao desenvolvimento econômico da sociedade, tem na função social um instrumento de avaliação do desempenho necessário ao cumprimento do grau de eficiência da sua utilização.
Esse instrumento, além de delimitar o direito de propriedade, oferece condições aptas a assegurar ao proprietário que a atividade rural continue a ser desenvolvida dentro da moldura programada pelo legislador constituinte.
Assim, o tema da função social da propriedade encontra seu regramento jurídico nos artigos 186, da Constituição Federal e no artigo 2º, § 1º, do Estatuto da Terra, que o regulamenta.

Diz o artigo 186, da CRFB:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento
racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.


O Estatuto da Terra (lei nº 4.504/64), recepcionado pela ordem
constitucional, dispõe o seguinte:
Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade
da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta
Lei. § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua
função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de
suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c)
assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as
disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os
que a possuem e a cultivem.


Ao se comparar ambos os regramentos legais, pode se constatar a preocupação do legislador (constituinte e infraconstitucional) com o desempenho da produtividade, da conservação dos recursos naturais, da proteção para com as relações de trabalho e o favorecimento do bem-estar daqueles que labutam a terra (proprietários e trabalhadores).


Importa destacar, com base na doutrina agrarista, o ponto de vista de que a função social estaria ligada ao imóvel rural e não especificamente à propriedade, eis que a posse também deve cumprir sua função social.


Assim, para Alcir Gursen de Miranda, citado por Benedito Marques (2011, p. 36), a expressão “função social da propriedade” seria uma impropriedade técnica, haja vista ser apenas “parte de um estudo central da disciplina, que é a função social da terra”, um dos princípios abrangidos pelo Direito Agrário.


De seu turno, o professor Benedito Ferreira Marques, acrescenta:


[…] a melhor expressão parece ser função social do imóvel rural, até
porque nem sempre quem trabalha a terra é o seu proprietário,
podendo ser apenas possuidor, como acontece nos contratos agrários,
em que o arrendatário é o possuidor direto, não se olvidando que
também o arrendador pode ser mero possuidor, como na hipótese de
usufrutuário. Daí que, ao dizer-se “propriedade da terra”, “propriedade
imobiliária rural” ou simplesmente “propriedade rural”, tem-se a ideia
ínsita de titularidade dominial, que, como sabido, não se confunde com
posse (MARQUES, 2011, p. 37).


Esse ponto de vista parece ser acertado, quando se tem em mente o desenvolvimento da atividade rural por quem não é o titular do domínio do imóvel.


Para a compreensão do ponto específico que se procura abordar neste ensaio, entretanto, a análise haverá de circunscrever-se em relação aos níveis de produtividade, para o Estatuto da Terra, e do aproveitamento racional e adequado, para a Constituição Federal.


Embora sua verificação se apresente como tarefa complexa, posteriormente os requisitos legais, de caráter objetivo, vieram delineados na lei nº 8.629/93, denominada Lei da Reforma Agrária, trazendo todas as exigências legais para o cumprimento da função social da propriedade rural.

O aproveitamento racional e adequado da terra está descrito nos parágrafos de 1º a 7º, do artigo 6º, da referida lei, destacando-se o grau de utilização da terra (GUT) e o grau de eficiência na exploração da terra (GEE), sendo que o primeiro deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel e, o segundo, deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), obtido de acordo com a seguinte sistemática:

1- para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;

2- para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea; 3- a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.


A partir desses requisitos e desde que atingidos os índices exigidos, configura-se a denominada “propriedade produtiva”, que se apresenta insuscetível de desapropriação, nos termos do artigo 185, II, da CF. Logo, para uma análise do ponto de vista da ordem econômica e de acordo com o princípio da função social da propriedade, o que se busca é o aproveitamento adequado e racional do uso da terra.

Desse modo, deve ser levado em consideração, inclusive, os casos fortuitos ou de força maior ou, ainda, de renovação de pastagens tecnicamente conduzida se estes forem determinantes para a perda da produção ou diminuição temporária da produtividade ou da eficiência, em certo período de avaliação, conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de
Justiça:

ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. GRAU DE EFICIÊNCIA NA EXPLORAÇÃO (GEE). DIVERGÊNCIA NO CÁLCULO. CASO FORTUITO. CONDIÇÕES CLIMÁTICAS ADVERSAS. LAUDO PERICIAL OFICIAL. PREVALÊNCIA.
PRODUTIVIDADE. RECONHECIMENTO.

1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, “aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”
(Enunciado Administrativo n. 2).

2. Não há violação do art. 1.022 do CPC/2015 quando o órgão judicial, de forma coerente e adequada, externa fundamentação suficiente à conclusão do acórdão recorrido.

3. A controvérsia cinge-se à interpretação do art. 6º, § 2º, II, e § 7°, da Lei n. 8.629/1993, não havendo necessidade de incursionar no conjunto fático-probatório para aferir se o imóvel expropriado se enquadra no conceito de terra improdutiva, para fins de reforma agrária, visto que as instâncias ordinárias realizaram profundo detalhamento dos elementos de convicção existentes nos autos.

4. É insuscetível de desapropriação a propriedade produtiva que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra (GUT) igual ou superior a 80% (oitenta por cento) e de eficiência na exploração (GEE) igual ou superior a 100% (cem por cento), nos termos do art. 6º, §§ 1º e 2ª, da Lei n. 8.629/1993 e à luz do disposto no art. 185 da CF.

5. Em relação ao GUT, os laudos judicial e administrativo convergem quanto ao percentual de 100%, superior ao mínimo estabelecido na legislação de regência, divergindo os experts somente em relação ao GEE, visto que o INCRA desconsiderou no seu cálculo o projeto de bovinocultura de corte elaborado para a obtenção de financiamento, cujo objetivo seria a reforma e formação de pastagens, bem como o número de equinos existentes na ocasião das vistorias, encontrando o índice de 76,27%, enquanto o perito judicial computou tais animais na análise da produtividade do imóvel, chegando ao percentual de 99, 98%.

6. Incontroverso nos autos que, durante o período em que foram elaborados os dois laudos técnicos, a região onde se localiza o imóvel passou por longo período de estiagem, o que resultou inclusive na edição de decretos de situação de emergência, circunstância que, segundo o juiz sentenciante, dificultou a execução do cronograma do projeto de recuperação de pastagem para bovinocultura de corte.

7. Não há dúvida que a crise hídrica prolongada, no caso, enquadra-se perfeitamente na hipótese prevista no art. 6º, § 7º, da Lei n. 8.629/1993, de modo a não permitir que, por essa razão, o imóvel seja considerado improdutivo, pois os proprietários não podem ser penalizados por fatos ocasionados por força maior, notadamente quando eles refletem diretamente na vegetação da pastagem.

8. Não há motivo para desconsiderar os equinos encontrados na fazenda, ainda que pertencentes a terceiro, no cálculo do GEE, porquanto a propriedade estava sendo objeto de exploração, mediante contrato de parceria firmado com os titulares do domínio e terceiros, que certamente faziam uso dos recursos naturais ali existentes, a exemplo do capim e da água, para
alimentar os animais.

9. No que concerne aos aspectos ambientais, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que a reserva legal, para ser excluída do cálculo de produtividade do bem, deve estar averbada no registro imobiliário em tempo anterior à vistoria, o que não ocorreu no caso concreto. Precedentes.

10. Não tendo a vistoria administrativa apresentado argumentos capazes de infirmar o laudo do perito oficial, que deve merecer a confiança do julgador, por estar equidistante das partes, não há como rotular uma propriedade rural como improdutiva quando ela possui um Grau de Utilização da Terra (GUT) de 100% e um Grau de Eficiência de Exploração (GEE) de 99,98% – apurado em perícia judicial -, ou seja, abaixo 0,02% do mínimo exigido. 11. Agravo conhecido para dar provimento ao recurso especial. (AREsp 1391146/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe
09/08/2019)

Segue daí que o quadro expropriatório deve ser o mais fiel à realidade do imóvel rural, pois a atividade agropecuária, considerada “empresa a céu aberto”, está quase sempre vulnerável às intempéries climáticas e às políticas econômicas que venham a desconsiderar essa realidade.


Mesmo assim, são crescentes os números de produtividade e de produção agropecuária no Brasil, capazes de sustentar o crescimento econômico do país, a partir de índices cada vez mais seguros de eficiência do setor.


Essa é a razão para que os índices de produtividade estejam sempre ligados à realidade econômica do produtor rural, que se desenvolve no âmbito dos mercados circunscritos à essa atividade, cujo objeto deve sempre permear as decisões econômicas e judiciais para o setor.